Campanha Nacional em Defesa do Cerrado questiona Dados Fundiários do MMA
No documento do PPCerrado, o MMA afirma – sem apresentar fontes – que no bioma Cerrado as propriedades privadas ocupam quase 80% da área
Durante audiência pública na Câmara dos Deputados – realizada no mês de setembro – o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática (MMA) lançou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado, o PPCerrado.
O plano pretende, segundo o MMA, “reduzir de forma contínua o desmatamento e criar as condições para a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável no Cerrado”. A meta é chegar a desmatamento zero até 2030. Um documento com o plano foi colocado para consulta e contribuições públicas no mesmo dia em uma plataforma online, que ficou aberta até o dia 13 de outubro.
A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado celebrou o lançamento do plano e preparou uma carta com contribuições, sendo a principal delas um alerta sobre uma das premissas estruturantes do plano de ação. No documento do PPCerrado, o MMA afirma – sem apresentar fontes – que no bioma Cerrado as propriedades privadas ocupam quase 80% da área. O dado é premissa estruturante do plano e, portanto, guia diretamente o desenho das ações por ele previstas e as graves ausências derivadas.
De onde veio esse dado?
Primeiramente, a Campanha procura, na carta, identificar quais poderiam ter sido as fontes da informação utilizadas no documento do MMA.
“É possível imaginarmos que tenham sido utilizadas as informações declaradas junto ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) para fazer esta referência quanto à composição fundiária das terras que integram o Cerrado. Ocorre que o CAR, como é de amplo conhecimento, é um cadastro autodeclaratório, obrigatório para todos os imóveis rurais, o qual, de acordo com o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), ‘não será considerado título para fins de reconhecimento do direito de propriedade ou posse’. Assim, a lei que criou este instrumento veda a sua utilização para aspectos fundiários.”
Somado a esse fato, explica a Campanha, a análise pelos órgãos ambientais estaduais dos CAR avança a passos lentos, de maneira que a maioria das informações presentes no sistema ainda precisa ser validada antes de ser utilizada para produção de dados, em especial, para orientação de políticas públicas, o que leva a crer que esta não foi a base de dados utilizada.
Outra suposição de fonte para o dado utilizado pelo MMA seria o Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF). Na carta a Campanha explica que a inclusão de uma área no SIGEF não assegura que essa matrícula atenda a todas as exigências legais, tendo em vista serem baixas as ações de fiscalização e controle desta questão. Neste sentido, é importante destacar que são diversas as formas de operacionalização da grilagem de terras, que muitas vezes produzem uma situação de sobreposição de matrículas.
A carta da Campanha ressalta que, dada a baixa governança fundiária existente no país – que conta com iniciativas pontuais de investigação dos processos de apropriação ilegal de terras públicas -, mostra-se difícil estimar numericamente sua extensão.
“Com efeito, temos um cenário em que muitas das terras públicas que deveriam estar sendo prioritariamente destinadas para acampados, povos e comunidades tradicionais, pequenos agricultores e outros beneficiários da reforma agrária, nos termos do art. 188 da Constituição Federal, estão ilegalmente incorporadas ao patrimônio privado.”
Além disso, no processo de grilagem, há o uso reiterado do desmatamento como instrumento para legitimar a invasão ilegal de terras públicas e abrir caminho para a legalização da grilagem.
“Em resumo, o desmatamento é utilizado como exteriorização de uma suposta posse, a qual serve como fundamento para ações judiciais e requerimentos administrativos que visam a obtenção de títulos. A terra já grilada, sobre a qual já existe um título privado com aparência de legalidade, torna-se também uma nova fronteira de expansão do desmatamento, em um processo de retroalimentação.”
Dado diminui governabilidade estatal
Com esse panorama sobre a questão fundiária no Brasil, a carta de contribuição da Campanha Cerrado para o plano nacional contra o desmatamento conclui que afirmar a predominância de propriedades privadas no Cerrado com quase 80% da área faz com que o PPCerrado parta de uma premissa inverídica, a qual diminui a governabilidade estatal sobre a questão fundiária destes espaços.
“Considerar estes imóveis ilegalmente apropriados como terras privadas implica abrir mão de um dos principais instrumentos de combate à grilagem que é a realização de ações discriminatórias e anulatórias de registros públicos, passando uma ideia de que dentro destas áreas supostamente privadas caberia a ingerência do Estado apenas de forma pontual, como na análise da reserva legal. Sendo áreas indevidamente retiradas do patrimônio público e, ademais, desmatadas, cabe ao Estado adotar as medidas para reverter esta situação, destinando estes imóveis ao final, para a preservação ambiental e para a reforma agrária.”
A carta ainda apresenta outros dados e análises sobre questões fundiárias e dinâmicas de desmatamento no Brasil, e finaliza a contribuição apresentando propostas concretas de ações de combate ao desmatamento e à grilagem construídas a partir da prática das organizações que atuam na defesa do Cerrado e seus povos e, portanto, baseadas nas evidências acumuladas no enfrentamento de crimes fundiários e ambientais nessa região ecológica ao longo de décadas.
As contribuições da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado ao PPCerrado foram enviadas no dia 13 de outubro – último dia de coleta das propostas – por meio da plataforma online criada pelo MMA para este fim. A carta foi assinada por mais de 50 organizações e movimentos de todo o Brasil. Também serão encaminhadas por meio de ofício ao Ministério do Meio Ambiente, requerendo inclusive reunião pública para tratar sobre o tema.
“Após colhidas e analisadas as contribuições da sociedade civil e dos Estados e Municípios, será elaborada nova versão preliminar do PPCerrado. A nova versão será apresentada à Subcomissão Executiva do Plano e, na sequência, o texto final será submetido à aprovação da Comissão Interministerial Permanente de Prevenção e Controle do Desmatamento, coordenada pela Casa Civil da Presidência da República”, informa o site do MMA.
A expectativa é que o lançamento do PPCerrado seja feito pelo presidente Lula antes da 28ª edição da Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – COP 28.