Notificações de desmatamento expõem falhas na regularização fundiária em Mato Grosso
A produtora rural Dora Zanin relata estar recebendo notificações de desmatamento que não cometeu e busca regularizar uma área de cerca de 1.700 hectares em Feliz Natal, próxima ao Parque Nacional do Xingu
Em Feliz Natal, Mato Grosso, um conflito fundiário expõe os desafios da preservação ambiental e as falhas na aplicação das leis no Brasil. A produtora rural Dora Zanin afirma que tem recebido notificações de desmatamento, apesar de não ter sido responsável pelas ações. A área de aproximadamente 1.700 hectares, registrada em seu nome no Cadastro Ambiental Rural (CAR), é de terras devolutas, ou seja, públicas. Dora enfrenta uma batalha judicial para regularizar a situação, agravada pela contestação de terceiros sobre a posse da terra.
Apesar de seu registro, a área foi alvo de decisões judiciais que permitiram a emissão de licenças de exploração florestal para outro interessado, gerando impactos ambientais graves e intensificando a disputa sobre o território.”Recebo notificações de desmatamento, mas sempre buscamos preservar a floresta. Enquanto isso, vejo madeireiros explorando a área, algo completamente oposto aos princípios da minha família”, afirma a produtora, que conta estar tentando regularizar a posse dessa terra desde 2007, por meio de requerimentos junto ao Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat).
Dora descobriu que a área estava sendo desmatada após receber alertas da SEMA (Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso) “Imediatamente comuniquei a SEMA e informei que o desmatamento não era de minha responsabilidade. Ao questionar o motivo do desmate, descobri que foi concedida uma licença para um madeireiro, que também pleiteava a área, mas que até hoje não obteve pauta. Portanto, as terras são públicas”, complementa Dora.
Conflito histórico
O Parque Nacional do Xingu, oficializado em 1961, tornou adjacentes algumas terras devolutas, como as da produtora. Essas áreas passaram a ser alvo de grilagem e exploração ilegal. Apesar de ter iniciado o processo de regularização há quase duas décadas e de apresentar laudos técnicos com imagens de satélite que demonstram a evolução do desmatamento antes de sua ocupação, a produtora continua sendo responsabilizada pelos danos ambientais.
Enquanto isso, o outro requerente conseguiu autorização da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) para explorar a área. A Sema afirma que a licença foi emitida por determinação judicial e que os documentos apresentados pelo interessado estavam em conformidade com as exigências.
“O indivíduo foi até o órgão ambiental e conseguiu a licença de exploração e desmatamento, mesmo com a existência de um conflito possessório e a proibição de exploração e desmatamento em área pública. Medidas judiciais já foram tomadas com o objetivo de suspender essa licença, pois ainda não sabemos, ao final do processo, quem demonstrará a melhor posse. Diante disso, solicitamos: “Excelência, por gentileza, estamos diante de uma situação grave. Antes de apreciar o mérito, pedimos, de forma liminar, que as licenças sejam suspensas, para que se preserve o meio ambiente e se garanta a imutabilidade dessa área, evitando danos ao erário futuro, já que estamos tratando de uma área pública’, explica a advogada Antônia Torres Bispo, que representa a produtora rural.
Impactos ambientais e sociais
O resultado dessa disputa já é visível. Dois projetos de desmatamento e um plano de manejo florestal foram executados entre 2020 e 2022. Segundo Dora Zanin, a parte da madeira extraída foi apreendida no Porto de Paranaguá, no Paraná e, está vinculada indevidamente ao seu nome.
“Foi apreendido um lote de madeira, que está em contêineres no Porto de Paranaguá, contendo Itaúba e outras madeiras raras, em meu nome e no nome da minha propriedade, porque o CAR e o GEL foram feitos por mim primeiro. Isso é uma prova de que a área era minha. Ou seja, há uma sobreposição de áreas por uma pessoa com interesses na exploração de madeira, o que não era o meu caso. Esse tipo de conflito não tem resolução”, lamenta.
O papel da Justiça e o futuro da área
A produtora entrou com um pedido de medida liminar para suspender as licenças até que a Justiça defina a titularidade da posse. O engenheiro agrônomo Edivaldo de Freitas, que acompanha o caso, aponta que uma análise técnica rigorosa é essencial para identificar os reais responsáveis pelos danos. Segundo ele, o madeireiro chegou a solicitar o registro no CAR Estadual, mas o pedido foi suspenso. Caso o processo avançasse poderia resultar em sobreposição de área, que hoje é um dos principais motivos de conflitos fundiários no Brasil.
“Em 2019, eu puxei o registro na SEMA e constatei que ele [CAR] estava suspenso, ou seja, nunca mais teve movimentação e foi cancelado. O órgão ambiental passou por cima da própria legislação, a Lei Complementar 592/2017, que proíbe a emissão de autorizações de desmatamento em área devoluta, já que a área não é de propriedade de ninguém. Mesmo assim, emitiram a autorização, o que resultou em dois projetos de desmatamento, um em 2020 e outro em 2021, além do plano de manejo de 2022. Como consequência, toda a área foi impactada”, conclui.
Outro lado
Procurada, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) afirmou que emitiu autorizações de exploração devido a uma liminar da Justiça que reconheceu o direito à posse do imóvel na área em litígio. A SEMA explicou ainda que, ao solicitar os atos autorizativos, o responsável apresentou os documentos exigidos pelo órgão ambiental, e, portanto, atendeu a todas as normativas legais. “As autorizações são para plano de manejo florestal sustentável e plano de exploração florestal”, informou a pasta.
A Secretaria reconhece que não autoriza a concessão florestal em áreas devolutas, conforme a Lei Complementar Estadual 92/2017, mas que, neste caso, a decisão judicial alterou a condição normal de análise em relação às notificações de desmatamento. A SEMA explicou que a produtora está recebendo notificações automáticas de desmatamento devido ao CAR feito sobre a área, com alertas de alteração na cobertura vegetal sendo enviados automaticamente para o e-mail cadastrado no sistema. As notificações são enviadas tanto para ações legais quanto ilegais, e o objetivo é que as atividades sem autorização do órgão ambiental sejam imediatamente cessadas, sob pena de sanções administrativas, civis e criminais, conforme estabelece a legislação ambiental.
Também questionamos o Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), que, em nota, informou que desconhece o recebimento do ofício mencionado na reportagem e que não realiza acompanhamento de contratos particulares junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA).